Se até os Gatos aprendem sobre a história das Missões - porque nós não?

  • A importância dos 160 anos das Missões para a Humanidade

    Assunto: Administração  |   Publicado em: 06/07/2017 às 15:06   |   Imprimir

 A importância dos 160 anos das Missões para a Humanidade
 
                                                             José Roberto de Oliveira
Uma das mais emocionantes histórias da humanidade ocorreu nas fronteiras do atual MERCOSUL. Área hoje formada pelas divisas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Entre os anos 1609 e 1768 Padres Jesuítas e índios Guaranis construíram um novo caminho para a humanidade. Inicialmente fundaram sua 'Província Modelo' com cerca de 30 Reduções nas Regiões do Tape (RS), Itatim (MS) e Guairá (PR), as quais foram atacadas pelos bandeirantes na tentativa de levar os índios como escravos, sendo que milhares deles acabaram nas lavouras de São Paulo.
Após vários ataques migraram para a região entre o Rio Uruguai e o Rio Paraná. Em 1639 o Padre Montoya foi a Madri, conseguindo a autorização para o uso de armas de fogo o que levou a única grande vitória guarani frente às tropas paulistas na Batalha de M'bororé em 1641. Deste momento em diante, passou-se mais de 100 anos de tranqüilidade, onde o projeto pôde crescer. Para onde hoje é o Rio Grande do Sul retornaram a partir de 1682.
Este novo modelo fazia com que as ferramentas e os meios de produção, em vez de pertencerem a particulares, eram propriedade coletiva; as classes e o Estado foram abolidos. Os trabalhadores da indústria e da agricultura formaram uma associação livre de trabalhadores que se administrou economicamente. A economia local organizada, segundo um plano, baseou-se numa técnica aperfeiçoada, tanto na indústria como na agricultura. Não houve oposição entre a cidade e o campo, entre a indústria e a agricultura. Os produtores foram repartidos segundo a regra "De cada um, segundo suas capacidades, para cada um, segundo as suas necessidades". A ciência e as artes foram colocadas em condições suficientemente favoráveis para chegarem a seu pleno florescimento. A personalidade dos guaranis isenta de preocupações da existência cotidiana e da necessidade de comprazer aos poderosos deste mundo, acabaram realmente livres.
O projeto foi constituído pelos jesuítas a partir das utopias de Morus, Bacon e Campanella. O Padre Lugon, em seu livro, disse que foi a mais original das sociedades realizadas. Paul Lafargue, em conjunto com Bernstein, Kautski, Plechanov explica que o projeto constituiu um das experiências mais extraordinárias, que jamais tiveram lugar.  Também Charlevoix e Muratori reconheceram-na como um modelo sem precedentes de sociedade cristã. A revista Lês Lettres Edificantes et Curieuses, dirigida pelos jesuítas, comparava os guaranis aos primeiros cristãos e descrevia suas comunidades como a realização ideal do cristianismo. Voltaire afirmou que o projeto Jesuítico-Guarani foi um "triunfo da humanidade". Montesquieu chamou de "primeiro estado industrial da América". O Abade Carbonel chamou de "coletivismo espontâneo". Pablo Hernandez na Organización Social de lãs Doctrinas Guaranies, escreve que o maravilhoso surge a cada passo. O filósofo Rayal escreveu: Aí se observavam as leis, reinava uma civilidade exata, os costumes eram puros, uma fraternidade feliz unia os corações, todas as artes de necessidade estavam aperfeiçoadas. A abundância era ai universal. Teve a graça das crianças, uma pureza repleta de candura. O mundo novo que estamos procurando realizar não pode menosprezar a lição fornecida.
A verdadeira história do cooperativismo começaria nas Missões. Lendo os escritos do presidente da Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul, Vergílio Périus, defende as idéias do estudioso Rafael Carbonell de Masy, de que é chegada a hora de resgatar a verdade sobre a origem da primeira cooperativa, surgida em 1627, nas Reduções Jesuítico-Guarani.
Dois padres cuidavam da vida religiosa e temporal de milhares de índios em cada redução. Naquela fase inicial, assim que uma tribo aceitava renunciar à vida nômade e se descobria uma localização favorável, era preciso construir, semear, comprar gado. Os padres expunham-se pessoalmente, labutando duro.
Com o deslocamento das reduções e a conseqüente exploração dos ervais, madeiras preciosas e estâncias, ocorreu o desenvolvimento. A localização final ficou estabelecida com oito reduções onde hoje está o Paraguai, 15 na Argentina, nas Províncias de Misiones e Corrientes e finalmente Sete do lado brasileiro, no noroeste do Rio Grande do Sul, onde hoje chamamos de Região das Missões. Algumas reduções chegaram a mais de 7.000 índios, o número de habitantes nos 30 Povos chegou a quase 150.000.
Pelas eleições escolhiam seus alcaides, fiscais e outros ministros, e por este exercício adquiriram um sentimento de autonomia nacional e de responsabilidade em face do bem comum. Elegiam-se também chefes de setores "escolhidos entre os mais fervorosos cristãos". O comércio exterior era também responsabilidade da confederação. As mais belas tradições de ajuda mútua e de amizade reinavam entre as diversas reduções e as diversas regiões. Os guaranis não eram desviados do mal pelo medo de punições, mas atraídos pelo bem em razão do ambiente social, pelo exemplo de todos e pela emulação.
Quanto à agricultura os índios tiveram que abandonar a vida nômade para se fixarem às reduções, as condições do território eram de excelentes terras. O clima era saudável. Canais de irrigação levavam a água aos campos. Cada redução tinha no mínimo oito imensas hortas comunais, os pomares estavam povoados de frutas.  Foram concebidas e fabricadas as ferramentas necessárias. Muito rapidamente, as reduções constituíram o conjunto agrícola mais completo e melhor organizado da América.  Quanto à pecuária só São Miguel abatia 40 rezes por dia para o consumo dos habitantes. Charlevoix assegura que o mérito do êxito alcançado cabia aos guaranis, como aos missionários da Companhia.
Quanto à introdução da indústria, foi muito mais difícil que a da agricultura. No princípio produziram vestuário, habitação, ferramentas agrícolas e transportes, as forjas e fundições vieram depois e tiveram muito sucesso. Todas as profissões artesanais tinham sido introduzidas e prosperavam. Fabricavam relógios, clarinetes, trompetes e tantos outros como nas melhores fábricas da Europa. A primeira oficina de impressão da Prata foi da República Guarani. Triunfaram em todas as artes. Montesquieu diz que o Estado Guarani foi o único estado industrial daquele período na América do Sul. Fundiram o ferro a partir das rochas encontradas na região e chegaram à siderurgia do aço.
Nas artes o Barroco fez-se pleno, mostravam-se sensíveis e acessíveis, possuíam naturalmente ouvido apurado e um singular gosto pela harmonia, aprenderam a tocar todo o tipo de instrumento, compunham músicas. O Padre Ripário diz que se não tivesse à vista os músicos acreditar-se-ia que as melhores orquestras da Europa estavam de passagem pelas Índias. Quanto à pintura e escultura eram de excelente qualidade.
O abastecimento, a armazenagem de produtos e sua distribuição eram assegurados pelos serviços comunais, sem qualquer intermediário comercial privado. A população obtinha os artigos sem dinheiro, nem qualquer espécie de moeda. Muratori afirmou que "Um dos mais sólidos fundamentos da paz e da união que reinam entre estes índios é a privação completa em que estão de espécies de ouro e prata, assim como em qualquer espécie de moeda". A profissão de comerciante não existia.
O comércio externo era coordenado por um padre que estava em Buenos Aires, o transporte fazia-se principalmente por via fluvial em barcos à vela ou remo. Uma rede de estradas pavimentadas também fora criada. Os principais artigos exportados pelas reduções eram o mate, o fumo, o algodão, o açúcar, os tecidos de algodão, os bordados, as rendas, os objetos trabalhados em torno, mesas, armários, e baús de madeiras preciosas, esculturas, peles, curtumes e arreios de couro, rosários e escapulários, mel, frutas de todas as espécies, cavalos, mulas, e carneiros, assim como e excedente de diversas indústrias. Todos eram vendidos à Europa, Corrientes, Santa Fé e Vila Rica. Importavam produtos manufaturados e metais. Toda a produção era orientada para a satisfação das necessidades do todo.
Quanto à questão da propriedade o Padre Florentin de Bourges diz: "todo o solo pertencia à comunidade e era indivisível. Os bens são comuns, a ambição e a avareza são vícios desconhecidos, e não se registra entre eles litígios nem processos de divisão... Nada me pareceu mais belo do que a maneira como se provê à subsistência de todos os habitantes do povoado. Os que fazem a colheita são obrigados a transportar todo o cereal para os armazéns públicos, seguidamente funcionários fazem a distribuição pelos chefes de bairro, e estes pelas famílias, dando a cada uma, mais ou menos, segundo seja ela mais ou menos numerosa".
Padre Cardiel registrou que os Guaranis não têm de seu, vacas, bois, cavalos, ovelhas ou mulas, e somente as galinhas. Tudo era comum entre eles. O Padre Antonio Sepp, quando da demarcação dos lotes na transferência de parte do povo de São Miguel para a nova terra disse que não houve qualquer conflito, pois não havia demarcação de qualquer limite, todavia encontrando indiferença, visto a satisfação com o regime de comunidade integral.
Quanto ao trabalho, em regra os guaranis não trabalhavam mais do que 6 horas diárias. Habitualmente iniciavam suas tarefas às nove horas, depois da missa, e as concluíam durante à tarde. Thomas Morus reconheceu que quando toda a comunidade trabalha este tempo é suficiente para o desenvolvimento da mesma. A comunidade atuava também como elemento de alegria no trabalho. De manhã os grupos desfilavam nas ruas e dirigiam-se para o campo ao som da flauta e do tambor, transportando com grande pompa a imagem de Santo Isidro, patrono dos agricultores. Pela tarde, no regresso, cantavam em coro suas canções de marcha.
Para a avaliação do trabalho, em geral, bastava acompanhar o ritmo médio. Aquele que não quer trabalhar não deve comer, aquele que não pode trabalhar deve comer. Os velhos, viúvas, órfãos, doentes eram mantidos a expensas da comunidade. Em uma carta dirigida ao governador de Buenos Aires, logo após a expulsão dos Padres, o Cabildo de São Luis diz: "Não somos escravos e queremos fazer ver que não gostamos do costume espanhol que quer "cada um por si", em vez de se ajudarem mutuamente em seus trabalhos cotidianos".
Adoravam o teatro e a dança, organizando grandes apresentações. O jogo de bola recebia todas as atenções, conforme o Padre Cardiel, os guaranis foram efetivamente os inventores do futebol, as bolas eram de borracha, feitas de resina de madeira. Jogavam com os pés.
A educação recebia uma atenção muito especial, pois dependia a prosperidade da República. Todas as crianças eram obrigadas a ir a escola pelo menos até os 12 anos. A igualdade notava-se pelo vestuário. Homens e mulheres recebiam em princípio, um trajo por ano, as crianças dois. O tecido e o corte eram uniformes para todos. O mesmo princípio de igualdade fazia com que não houvesse pobres entres eles.
A fé cristã implantou-se a custa de suor e sangue dos missionários. O caráter fraternal das instituições guaranis e, na base, do seu regime de propriedade, explica principalmente o fervor religioso e cristão sem par que reinou durante mais de um século e meio. O homem não era forçado a ser egoísta. O seu interesse pessoal coincidia normalmente com o bem da comunidade.
Em 1750 as Reduções Jesuítico-Guarani pareciam ter atingido o seu mais alto ponto de esplendor. A cédula real de 1743 reconhecia seu lealismo e devoção à Coroa, porém em 13 de janeiro de 1750 ocorre o Tratado de Madri, que trocava os 7 Povos do lado esquerdo do Rio Uruguai pela Colônia de Sacramento, portuguesa, levando à Guerra Guaranítica ocorrida entre os anos 1754 a 1756, onde no dia 7 de fevereiro ocorre a morte do Corregedor Sepé Tiaraju e no dia 10 a Batalha de Caiboaté, onde ocorreu a quebra de palavra dos exércitos de Portugal e Espanha, pois ocorreu o empenho de palavra de que a batalha ocorreria apenas 3 dias depois, mas os guaranis foram traídos, com isto ocorreu a morte de 1500 dos principais caciques e líderes índios, rompendo a segurança das Reduções, resultando na tomada pelos exércitos de Portugal e Espanha.
Por fim em 1767, com execução em 1768, o rei da Espanha Carlos III, assinou os decretos de expulsão dos Jesuítas das terras da América e das Colônias espanholas e finalmente em 1773 ocorre à supressão da Companhia de Jesus. No Paraguai as tropas que substituíram os Jesuítas desonraram-se com atos de violências. O povo guarani, descendente daquele período, continua vivo nas aldeias ou formando os pobres do Rio Grande do Sul e América latina.
Hoje se pode ver o que restou deste grande projeto em uma visita ao Patrimônio Histórico Cultural da Humanidade de São Miguel das Missões, único do Sul do Brasil, mas também em outros sete locais missioneiros na parte brasileira. Outros locais imperdíveis são o Caaró e Assunção do Ijuí, representativos da morte dos três Santos Mártires Missioneiros. Há um conjunto de cidades de formação europeia do início dos anos 1900. Imperdível é andar pelo 'Caminho das Missões' em seus roteiros de 28, 14, 7 ou 3 dias a pé. Depois, passa-se ao lado argentino e paraguaio, completando a visita turística aos 30 Povos, o Circuito Internacional das Missões Jesuítico-Guarani, onde são sete patrimônios mundiais missioneiros.
 
José Roberto de Oliveira é pesquisador, Mestre em desenvolvimento, foi Vice-Prefeito de São Miguel das Missões – Patrimônio Cultural da Humanidade, foi Diretor de desenvolvimento do Turismo do Rio Grande do Sul e Assessor do Ministério do Turismo. Contato joseroberto_deoliveira@yahoo.com.br fone 55.9.9638.6360.